não quero um ar condicionado
quero uma revolta popular contra o aquecimento global e o capitalismo selvagem, mas a população não consegue se organizar por ter que trabalhar demais para enriquecer bilionários, não quero ar condici
oi
semana passada simplesmente não deu, não rolou momento propício para escrever. motivo? aquecimento global, caos, desfalecimento térmico no dia mais quente de porto alegre, sensação térmica de quase 50 graus.
não que eu pense que cês ficam em casa só esperando minha cartinha cair no e-mail, afinal todo mundo tem mais o que fazer. porém, já falei em algum momento dessa news, talvez lá nos primórdios quando era hospedada na tinyletter e se chamava perdi o bonde e a esperança, que uso isso aqui como um mapeamento da minha própria existência. então, dizer que “não escrevi porque estava morrendo de calor” (quase que de forma literal) é marcar na história que estamos na era de não conseguir fazer muita coisa em virtude de nosso derretimento. estou, de algum jeito, “fazendo história” (risos. de desespero).
o título é isso aí mesmo, eu não quero um ar condicionado. quero (inutilmente) que o planeta terra seja um lugar habitável, que o verão tenha máximas de 30 graus e que um ventiladorzinho arno (ganhei zero centavos pra essa publi) seja o suficiente. sonhei? sonhei muito, sonhei gravemente.
mas a carta não é sobre isso. pra tragédias acesse portal de notícias.
leituras do momento
a partir do podcast yo no sé leer, descobri uma escritora espanhola maravilhosa e desde então estou dedicada a consumir tudo o que ela escreve. porém, é uma obsessão bem diferente das que vivenciei com alejandra pizarnik, paul auster ou domenico starnone. é uma obsessão calma, pois a obra não me causa aquele boost de adrenalina, mas discorre sobre situações que é impossível não querer saber aonde vai chegar.
sara mesa nasceu em madri, em 1976, e mudou-se para sevilha ainda quando pequena. estreou no universo literário com o livro de poemas este jilguero agenda, em 2007. a partir de então vieram coletâneas, romances, premiações.
no podcast em questão, as apresentadoras falam sobre cicatriz e esse foi o caminho pelo qual comecei. vou fazer aquele control cê control vê do goodreads:
muitas reviews do goodreads dizem que cicatriz não é inovador na premissa: mulher encontra homem psycho num chat online. eu meio que discordo. a maneira como ela expõe essa relação que se estende por anos através de emails e sms é feita de tal forma que não tenta emular exatamente a tela de um computador e celular e nos permite ver que tipo específico de atormentado é esse cara. porém, sonia, a protagonista dessa espiral de coisas aberrantes, não é uma coitada isolada do mundo que não tem onde cair morta. ela mora com irmãos, mãe e avó, quer sair de casa para ser independente, claro, mas não é como se fosse uma reclusa completa.
and yet.
o tipo de atenção que knut hamsun, pseudônimo do cara, lhe coloca é extremamente inebriante para ela e o tipo de laço afetivo-obsessivo que surge entre eles é ditado a partir de outros meios: knut furta livros de grandes cadeias de livrarias e do el corte inglés e envia para sonia. com o tempo, os artigos passam a ser roupas e sapatos de grife, cosméticos, meias.
o livro foge do convencional porque a relação obsessiva não chega ao ponto de violência física, mas existe sim uma espécie de dependência emocional de ambos. o comportamento esquisito (para dizer o mínimo) de knut se retroalimenta do comportamento dependente da sonia.
achei um livro muito bom, pois mantém a gente interessada em como aquilo tudo vai terminar. ainda, é narrado de forma não cronológica, o que coloca tudo isso em perspectiva, como se o tempo realmente não importasse, pois a relação é a mesma ao longo do período.
no trecho a seguir, sonia reflete por que raios ela ainda mantém contato com knut, por qual razão absurda ela aceita a comunicação e os presentes roubados que knut envia:
la vanidad. es tentador sentirse el centro de atención de alguien hasta ese extremo. imagina que un tipo te regala todo eso sin que tú se lo pidas. sin exigirte nada a cambio. porque sí. simplemente porque quiere halagarte. porque se lo aceptas. eso es: simplemente porque estás ahí para recibirlo.
cicatriz, sara mesa, 2015
mal terminei cicatriz e já abri la familia, uma história sobre…uma família, oras. porém, não uma idealização de família, não é aquela coisa do “se estapearam a vida inteira, mas no fim das contas olha que lindo esse laço que unia todas essas pessoas”.
também narrado de forma não cronológica, sara mesa organiza a “história principal” composta por madre, padre, rosa, damián, aquilino e martina, sobrinha da “madre”, filha adotiva nessa família.
existe uma história paralela, na verdade só um recorte, que mostra como madre (laura) e padre (damián) se conheceram e se casaram. descobrimos outras coisas sobre cada membro dessa família, mas a não-linearidade confere a atmosfera de que não se pode contar uma vida, uma situação familiar, de modo organizado e localizado no tempo.
cada capítulo coloca sua câmera sobre um personagem e é a partir desses muitos relatos que construímos um todo (relatos sempre em terceira pessoa, apenas mudando nos últimos capítulos, em que certos membros da família assumem o ato de narrar). vale ressaltar que esse “todo” não esgota as lacunas do que podem ter vivido aquelas pessoas. temos algumas partes, outras podemos apenas deduzir.
a respeito do sentimento de martina dentro desse núcleo familiar extremamente problemático e autoritário, lemos:
mientras se zampaba un alfil con la reina, tuvo la intuición de que todos fingían, de que nadie hacía lo que en realidad quería hacer. damián odiaba estudiar, no que más le gustaba era vaguear y tumbarse en la cama a leer tebeos —demasiado infantiles para su edad, según padre —, rosa detestaba los manuales de astronomía y de botánica como cualquier otra ninã; lo que de verdad le entusiasmaba, bien lo sabia martina, era jugar al fútbol como un niño — como un niño bestia —. en cuanto a madre, martina estaba convencida de que prefería rezar a coser, comer a cocinar — bastaba com que padre se diera la vuelta para que así fuera.
la familia, sara mesa, 2022
também teve
se eu começar um ano sem ler paul auster, não sou eu, né? dessa vez, embarquei em hand to mouth, os anos em que auster passou uns perrengues, pois queria viver apenas de sua arte. por longo tempo viveu de freela, mas daí o filho nasceu e os boletos tiveram que ser levados mais a sério. é legal (???) porque nessa época de grande escassez material, vida financeira horrorosa, o auster estava escrevendo seus poemas, aqueles que me deixaram totalmente doida por ele. assim, nessas memórias temos o paul auster na ânsia de ter e não possuir ser escritor e dedicar-se apenas a isso em conflito com as demandas do capitalismo. quem nunca? se eu traduzisse esse livro para o português, o chamaria de “na pindaíba”. companhia das letras, me chama.
a respeito de um trabalho que ele teve nos navios da esso, auster escreve:
the ugliness was so universal, so deeply connected to the business of making money and the power that money bestowed on the ones who made it — even to the point of disfiguring the landscape, of turning the natural world inside out — that I began to develop a grudging respect for it. get to the bottom of things, I told myself, and this was how the world looked. whatever you might think of it, the ugliness was the truth.
hand to mouth, paul auster, 1982
lembrando que esses empregos que o auster conseguia eram todos voltados ao trabalho braçal, com algumas exceções em que ele começou a trabalhar como jornalista, mas isso muito tempo depois de ter esfregado muito chão e lavado muito prato.
o novo livro de domenico starnone também marcou presença nas minhas leituras de fevereiro.
línguas é o relato de um homem já mais velho a respeito de sua infância/adolescência e o descobrimento do amor e da morte. com isso, passa a compreender que a realidade não é um bloco concreto de acontecimentos, mas é sempre matizada pela memória de quem conta.
nisso, o personagem, que é protagonista e narrador, traz questões da sua infância, mas em especial de sua avó, que parece ser uma figura quase coadjuvante, mas que não é. o menino apenas a trata com um desdém que para nós, leitoras, é desproposital. eu gosto muito disso nos personagens masculinos do starnone: são uns insuportáveis? são. mas ele não vai fazer você odiar o cara apenas por ter colocado todo o kit de macho escroto ali para que você “aprenda como é um macho escroto”. aliás, eu tenho pavor de literatura que tenta me ensinar alguma coisa assim descaradamente. sejam mais imaginativos, por favor.
nesse trecho, o personagem fala da grande admiração, da veneração, que sua avó sentia por ele e do quanto ele sentia veneração pela menina milanesa pela qual se apaixonara:
minha avó nunca desistiu e, se me via entristecido com minha própria miudeza, sem vontade de falar nem com ela, tentava me fazer rir […]. queria dizer que não havia comparação entre mim e outros melros cantadores que repetiam sempre o mesmo refrão idiota em qualquer parte do vasto mundo: eu cantava de um modo tão fora do comum que ninguém, exceto ela, podia se dar conta. portanto, ainda bem que as pessoas de seu tipo de vez em quando caíam nesses erros. é tão consolador saber que há pelo menos um ser humano que pensa em você, mesmo se equivocando: ah, como essa pessoa é preciosa, quero cuidar dela até morrer. eu, ao longo da minha existência, fiz isso todas as vezes que pude, mas a primeira vez que fiz, sim, foi com a milanesa.
línguas, domenico starnone, 2024 (o livro foi originalmente publicado em 21, na itália)
ufa! hablei hein, hablei e hablei demais hoje. estou devagar e sempre na leitura de o conde de monte cristo e dos diários da alejandra pizarnik, dois tijolos.
(reconheço que estagnei num tijolão do paul auster, mas tudo bem, um dia chegarei aqui dizendo que concluí 4 3 2 1)
para ouvir
disponível no spotify, mas também no youtube, o overthink podcast é um dos meus favoritos quando se trata de pensar grandes temas da humanidade através dos tempos. o que me chamou a atenção nesse episódio foi a monetização do término. explico: ellie anderson e david peña-guzman comentam como o término de relacionamentos amorosos se tornou um mercado. terminar um relacionamento dá dinheiro pra quem investe nesse típico específico de cura para a dor do coração. para isso, abordam a questão dos términos amorosos ao longo da história. vale muito a pena ouvir!
reforço a indicação do posdcast que deu origem à paixão por sara mesa:
é isso
um bêjo,
fui
sue ⚡
está mesmo insuportável esse calor! e estou 100% fechado contigo: eu quero uma temperatura digna, não ar condicionado. enquanto não rola o protesto, vou atualizar minha listinha de livros para ler com as indicações que você deu aqui…